sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O Sublime Vagabundo

       "O homem não deve almejar ser amo e senhor mas aspirar em converter-se em homem livre. A submissão de outros homens traz sempre a própria submissão. Quem escraviza é escravo. O amo é a figura do escravo ao contrário. Prometeu era um homem livre e um libertador, enquanto que o ditador é um escravo escravizador. A aspiração de poder é um desejo vil. Cristo é o protótipo do homem livre, César é o exemplo do escravo do mundo, submetido ao desejo de poder, percebendo apenas a vocação das massas para torná-lo senhor. Mas os servos também derrubam os amos e os césares. Liberdade é libertação não apenas dos opressores mas dos outros escravos igualmente. A condição de senhor é determinada por necessidades externas, não é uma imposição de personalidade, é uma injunção. Somente o homem livre é uma personalidade. Os demais são arranjos."

                                                                      Nicolai Berdiaev, Escravidão e Liberdade                  










         O que sempre caracterizou a vida do Cristo foi o fato dele nunca ter se adaptado ao sistema babilônico, na sua época representado pelo Império Romano, a primeira Besta do apocalipse. Ele não estava entre aqueles que adoraram a Besta. Cristo foi um marginal, não se dobrou ao poder das instituições que sustentam a sociedade: família, mercado, religião e estado. Não teve emprego, não se casou, nem teve filhos, não fez parte do Clero, não ocupou nenhum cargo no estado ou na academia.
        Se ele pregasse as ideias que defendeu, nos dias atuais, ele seria preso ou internado em um manicômio. Os cristão bem acomodados em suas vidas de bons cidadãos responsáveis e trabalhadores, seriam os primeiros a apedrejá-lo. Pensa um louco, barbudo e cabeludo, solteiro, vivendo na companhia de outros doze loucos, pobres e maltrapilhos como Ele, pregando que as pessoa não deveriam se preocupar com o que eles iriam comer, vestir ou onde dormir amanhã, que são as principais preocupações de todo cidadão normal e responsável. Esse Homem seria motivo de desprezo e escárnio geral. Falando ainda de um utópico Reino de Deus, que se realizaria no futuro próximo, para as pessoas que estivessem dispostas a esquecerem de si mesmas, sacrificando-se pelo bem comum.
        Só um Louco poderia ser portador de ideias tão sublimes e altruístas, no entanto, tão distantes da realidade mesquinha da sociedade humana, presa às ilusões de suas próprias concupiscências. Ele não possuía nada que pudesse dar qualquer tipo de respeitabilidade às sua ideias políticas e religiosas. Não possuía casa, era um morador de rua que vivia no trecho; não tinha esposa, o que levava alguns a desconfiarem de sua masculinidade; não tinha emprego público ou privado, o que o enquadrava na categoria dos vagabundos; não fazia parte de nenhuma congregação religiosa, angariando para si o ódio dos sacerdotes e dos escravos da religião, manipulados por eles. Ele era completamente livre das instituições da sociedade de sua época, o que o colocava na mesma tradição dos Profetas do Antigo Testamento, que viveram e morreram à margem da sociedade iníqua.
        Esse Homem que muitos diziam ser um sábio, não conseguira nenhum sucesso no mundo das artes, da política, da religião ou da academia. Ele era simplesmente um nada, mesmo assim, como tinha a audácia de defender ideias tão revolucionárias? um Homem que tinha o status de mendigo, querer propor ao mundo um outro tipo de lógica, com outra forma de relacionamento entre as pessoas, sem hierarquia, sem vaidade ou orgulho, onde todos eram irmãos e deveriam se amar e se cuidar como se fizessem parte de uma grande família universal. Mas mesmo sendo visto como um Louco, com ideias que a maioria do povo não conseguia aceitar, muito menos compreender, O Cristo era amado e querido, porque seu modo de ser era amável e simpático, compreensível e solidário, conquistando os corações daqueles que conviviam com ele.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

A Morte-Vida


" Abril é o mais cruel dos meses "

                             T. S. Eliot, A Terra Desolada


        Em abril de 2005 tive uma experiencia de quase morte. Os remédios que usava para depressão, esquizofrenia e síndrome do pânico, me causaram uma hepatite medicamentosa. Quando meu psiquiatra soube, pelos exames de sangue, dessa lesão no meu fígado, decorrente do excesso de medicamentos, mandou-me parar de usá-los. A interrupção abrupta provocou o que os médicos chamam de efeito rebote, que foi o responsável pela minha quase morte. Passei cinco dias e noites em pânico, sem comer nem dormir. na quinta noite senti meu espírito abandonando meu corpo, como se estivesse morrendo. Por algum tempo, não me lembro quanto, vislumbrei outra dimensão extrafísica, que estava como que pintada de faixas e manchas azuis. Fiquei com a impressão de ter ido para o outro lado da vida e voltado. Ainda não era a hora de retornar para a pátria espiritual.
        Em um mês emagreci vinte quilos. Passei a vagar pelo mundo como um morto-vivo, uma alma penada expiando seus pecados, com um olhar que gritava e que assombrava as pessoas. Nos meses seguintes ficava meditando o porque de ter vivido todo aquele horror. Minha consciência católica procurava entender ou descobrir quais os pecados hediondos  havia cometido para merecer um castigo tão cruel.
        Desde aquele ano fatídico minha vida se tornou um vagar sem termo, um caminhar sem rumo nem objetivo, uma peregrinação furtiva em busca de algo que não sabia exatamente o que era, talvez uma escavação em busca de si mesmo; a demanda de um sentido individual e coletivo para a existência; uma revolução socialista; uma família com esposa e filhos; ou simplesmente tentar sobreviver nesses nosso tempos calamitosos.
        Foram doze anos vagando pelo Brasil como uma alma penada, como que para se redimir de alguma maldição, carregando nos ombros curvados o peso de uma culpa milenar. Fogo apartado, vivendo a margem da sociedade, sem emprego, sempre só, visto por muitos como um vagabundo, e por quase todos como um louco. Me agarrava aos estudos como um náufrago abraçado a uma tábua de salvação.
        Em 2009 fiz um voto de castidade como forma de penitência, depois de ter vivido outra experiência de horror em agosto de 2008, que quase me levou ao suicídio. Estou há oito anos casto e talvez graças a isso, por uma graça concedida por Deus, estou me libertando da minha morte-vida.