quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Anjo Negro

O Anjo Negro desceu

No Reino das Sombras

E visitou as ruínas do mundo

As belas coisas que viu

Aterrorizaram-no até as lágrimas

Ele recolheu o resto das almas

As mais feridas e deformadas

Apaixonaram seu coração dolorido

Chorou no ventre da menina

Existe algo mais frio do que

O coração de uma prostituta?

Pobres criaturas sagradas

A catástrofe cintilou

Na aura dos seus olhos

A cidade de açúcar

Cheirava a esgoto

O Príncipe Encantado das Trevas

Revelou o horror de nossa beleza

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ruínas de Berlin

          Há uns trinta anos acordei de madrugada, liguei a televisão no canal 4, a TVE, e estava passando um filme que marcou minha vida. Era um dos últimos episódios de Berlin Alexander Platz, o épico de Rainer Werner Fassbinder. Era a antológica cena do matadouro, onde pessoas eram penduradas em ganchos, sacrificadas como gado. Fique com aquela cena gravada na memória.
          Em 2010 comprei um box do filme pela internet, contendo seis DVDs, divididos em 13 episódios mais um epílogo. Estava morando em uma república universitária, com mais duas pessoas. Uma delas, o que eu ainda não sabia, era uma maga negra burguesa. Com o fim da república, ela acabou me roubando vários objetos pessoas, possivelmente para algum ritual de magia negra. Entre esses objetos constavam roupa, perfume, livros do Robson Pinheiro revelando o modus operandi dos magos negros que combatiam os agentes do Cordeiro aqui na Terra, o a caixa de DVDs que eu ainda não havia assistido. Para minha sorte havia emprestado para um amigo cinéfilo copiar. Pedi para que ele gravasse para mim o filme. Era o ano de 2011.
          Devido a minha vida atribulada, sempre mudando de casa, lutando contra paixões delirantes, falsos amigos e obsessões espirituais de todo tipo, só consegui assistir todo o filme este ano. Foi a realização de um sonho de infância.
          O filme foi uma segunda adaptação para o cinema do romance expressionista do escritor judeu alemão Alfred Döblin. Retrata a vida de Franz Biberkopf , recém saído da prisão após matar um prostituta com quem vivia e explorava, no ano de 1928, durante a República de Weimar. Franz faz uma promessa de que levaria uma vida decente. No início arruma uma namorada judia, se apaixona e procura um emprego honesto, para ser considerado um homem de bem. O tio de sua namorada lhe arruma um trabalho de vendedor de cadarços, numa Berlin com mais de um milhão de desempregados. Se envolve com uma cliente viúva, e comete o erro infantil de contar para seu "amigo". Este vai até a casa da viúva e a chantageia, levando dinheiro e objetos. Neste casa observamos o grande erro de Biberkopf : confiar nas pessoas.
          Ao longo do filme o personagem passará por vários empregos, confiará em vária pessoas que sempre acabam traindo-o. Mesmo assim ele não perde a esperança de viver honestamente e encontrar amigos verdadeiros. O subtítulo do filme poderia ser: a vida desgraçada de Franz Biberkopf. Em em meio a uma Berlin arrasada econômica e socialmente, os trabalhadores procuram desesperadamente qualquer forma de sobrevivência, e muitos aderem aos movimentos nazistas e comunistas, uns por ideologia, outros por falta de opção. É a década onde é gestado o ovo da serpente da ascensão nazista na Alemanha.
          Durante sua peregrinação por bares, prostíbulos, empregos provisórios e romances trágicos, Biberkopf descobre que ser um homem decente não é tão simples quanto ele imaginava. Confrontado com seu comportamento contraditório que o leva a atos de traição de suas companheiras, com a inveja daqueles que considerava como amigos, ele cumpre sua via crucis. Como em romance de formação, assistimos a trajetória de uma espécie de quixote alemão, que nunca perde a fé na vida, na sinceridade e na amizade.
           A lendária cena do matadouro é uma metáfora perfeita das ruínas do capitalismo em crise aguda, que tritura as pessoas sem piedade para manter sua lógica perversa de acumulação, enquanto os sonhadores, como Franz Biberkopf, lotam os hospícios e os necrotérios, em um tempo em que muitos acreditavam que era o apocalíptico fim do mundo.
          Mas no final ele sobrevive, aleijado, marcado a ferro e fogo pelo caos social e humano de uma sociedade reificada, onde as pessoas apenas usavam umas as outras, com uma inconsciência quase infantil, descartando-as quando não servem mais. O nazismo transformaria essa sociabilidade coisificada em uma máquina de extermínio daqueles que não serviam mais á lógica destrutiva do capital.
       

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Cidade dos Desejos

"Aqui é um lugar de desamor."
T.S. Eliot

- I -
A realidade do sonho em um mundo onde o imaginário foi colonizado pela indústria cultural do capitalismo é semelhante aos filmes de Hollywood. As pessoas são gentis, sorridentes e ingenuamete belas. Sonho e pesadelo se confundem. O real é idealizado. Existe um poder obscuro que comanda este mundo. São os poderes das trevas. As pessoas vivem narcotizadas. Alguns perdem sua identidade e a reconstroem a partir dos mitos do cinema, pois são sua única referência. Não há desconfiança entre as pessoas, elas se enganam sem o saber, são idealistas-oportunistas. Existem vários níveis de bajulação, cada um desprezando quem está abaixo e chubolando quem se encontra acima de sua classe social. O artista sente-se independente deste jogo macabro, mas não está. Ele é dependente do dinheiro de quem comanda a indústria cultura. A rebeldia do artista se limita a um terrorismo infantil e inócuo que não representa ameaça para o sistema.

Os crimes de acerto de contas entre os bandidos atingem sempre vítimas inocentes. "Vamos, será como no cinema! A gente finge ser outra pessoa". O superego não existe para as pessoas, elas traem-se com a maior tranquilidade e a culpa, se existe, é sempre do outro. "O inferno são os outros". A identidade desintegra-se e não nos reconhecemos, procuramos desesperadamente saber quem somos. É um mundo kafkiano, uma rede de poderes manipulando as pessoas de maneira invisível, enquadrando-as violentamente, às vezes explícita, outras vezes não, se tentam questionar esta lógica. Nesse mundo (não se sabe qual) a identidade sexual também se perde.

Tudo lhe é permitido, menos o essencial. No entanto, mesmo no inautêntico reside um pouco de autenticidade. Na cidade dos desejos nossos sonhos secretos se realizam ,mas como simulacro, uma imitação barata da vida real. Dissimulamos nossa experiência, nosso prazer e nosso sentimento. "Não há banda. Isto é apenas uma gravação." Nos iludimos constantemente. Como afirmava Kafka: nosso mundo tem como princípio básico a mentira universal.

- II -
O filme Cidade dos Sonhos do cineasta estadunidense David Lynch é uma obra ao mesmo tempo linda e triste. É uma síntese de boa parte de sua filmografia. Neste filme perturbador encontramos elementos de Veludo Azul, de Os Últimos Dias de Laura Palmer e A Estrada Perdida. A história nos mostra que só podemos amar plenamente e sermos verdadeiramente felizes nos sonhos. A vida desperta é um pesadelo sem esperança. Neste mundo aqueles que amam intensamente estão condenados à loucura e ao fracasso. Apenas os frios de coração,que não amam ninguém, a não ser a si mesmos, conseguem vencer. O mundo capitalista foi feito para essas pessoas e é nesta selva que eles triunfam. Aqueles que amam profundamente estão em extinção. Esse filme me deixou abalado, passei o dia seguinte possuído por essa história trágica. Foi um dia depois que consegui refletir sobre a lucidez pessimista representada nessa obra de um artista genial. Como tudo que acontece comigo, de maneira retardatária. A mensagem implícita de David Lynch é que nossa existência é um deserto, uma fantasmagoria que revela nosso desespero e solidão, onde não há lugar para compaixão. É um sociedade opressiva que enquadra de forma sutilmente violenta todos que tentem escapar da sua lógica destrutiva. Não há solidariedade entre os seres esmagados por essa estrutura monstruosa, somente nos sonhos encontramos instantes de felicidade real. É um filme radical. Lynch leva ao extremo sua visão pessimista, por isso lúcida, da sociedade estadunidense, sua reificação, perversidade, desumanidade e desolação. Os que amam com paixão e desvario estão condenados a serem coadjuvantes dos mais fortes, os sem-coração, os protagonistas deste teatro macabro em que se transformou o capitalismo tardio. Esse mundo se revela, sob o Véu de Maya, como um corpo em putrefação, uma estrada perdida, um pesadelo do qual não conseguimos despertar e que aguarda ansiosamente pela sua morte. Mais uma coisinha. O espectador, assim como a personagem principal e também todo ser humano oprimido por este sistema iníquo ,é jogado abruptamente do sonho para o pesadelo da vida real, sem nenhum aviso ou proteção. Somos simplesmente lançados na selva da cidade moderna, processo que durou séculos, sem termos tempo de reagir a esta agressão infame que nos é imposta. O ser humano é esmagado pelo peso de uma realidade asfixiante, sem um abrigo para sua alma desamparada. Neste meio alucinado o amor transforma-se também em mais um vício, numa droga poderosa. O exemplo disso é a vida da protagonista, Betty-Diane, que entra em um processo de destrutividade que a leva a encomendar o assassinato de sua amada. Consumida pela culpa, primeiro ela enlouquece e depois se mata. Uma profecia anunciada. Aqui é um lugar de desamor, nos lembra T.S. Eliot, outro grande poeta dos Estados Unidos, mais um crítico radical da modernidade.

- III -
Nesta dança universal da morte nossos sentidos são estimulados até a completa exaustão. Somos programados desde crianças a desejar ansiosamente uma vida de mercadorias que agora precisa ser descartada com a nossa contribuição. Este moinho satânico destrói as vidas a uma velocidade alucinate, conforma nossa condição existencial de meras fantasmagorias que povoam as cidades. Não nos damos conta que estamos caminhando para um novo holocausto planejado para atender as necessidades de lucro do capital. Atingimos o ápice de uma sociedade desumana, com uma lógica irracional que está travestida de um sentido humano e que, no entanto, despe-se de sua ideologia humanista e mostra sua face cadavérica para o horror de alguns e a resignação da maioria. É o drama barroco moderno analisado por Walter Benjamin, que envolve todos nós em uma celebração da destruição e do caos. Deus está morto, tudo é permitido e o coração deste mundo mergulha nas profundezas da noite cósmica. A história não começou, o ser humano não nasceu e estamos encenando um teatro macabro cheio de som e de fúria que nada significa. Veja Almador! A superabundância de coisas que encontramos na cidade. Quantas maravilhas disponíveis para a fruição desinteressada: mulheres bonitas, comidas de todo o mundo, diversões, carros do ano, teatro, cinema, shows, rodeios, festas, bebidas, cocaína, zuka, prostitutas, escolas, universidades, shoppings, igrejas, etc. O tempo é pouco para aproveitar tudo isso na velocidade que o capital exige. Tempo de trabalho e tempo de consumo preenchem toda nossa existência e, no entanto,estamos sempre insatisfeitos e irritados, porque somos induzidos a pensar que merecemos mais, que podemos conseguir mais, sem nos perguntarmos a razão de todo esse frenesi consumista. É um mundo dominado pela forma-mercadoria, no qual servimos apenas de suporte para a valorização do capital, onde o que existe são relações entre coisas e relações coisificadas entre pessoas. Um ótimo antídoto contra essa cultura farisaica é a proposta do romantismo revolucionário que busca reencantar as relações interpessoais, reaproximando as pessoas dos valores místicos, coletivos e solidários. É uma espécie de religião da natureza proposta por Hölderlin e Coleridge, poetas românticos que procuraram negar a reificação capitalista em sua totalidade, tanto na economia quanto na cultura, tateando desesperadamente por uma utopia que iluminasse este tempo sombrio, vislumbrando na natureza um novo tipo de sociabilidade, uma nova consciência que libertasse o ser humano das correntes da cobiça e do individualismo.