quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ruínas de Berlin

          Há uns trinta anos acordei de madrugada, liguei a televisão no canal 4, a TVE, e estava passando um filme que marcou minha vida. Era um dos últimos episódios de Berlin Alexander Platz, o épico de Rainer Werner Fassbinder. Era a antológica cena do matadouro, onde pessoas eram penduradas em ganchos, sacrificadas como gado. Fique com aquela cena gravada na memória.
          Em 2010 comprei um box do filme pela internet, contendo seis DVDs, divididos em 13 episódios mais um epílogo. Estava morando em uma república universitária, com mais duas pessoas. Uma delas, o que eu ainda não sabia, era uma maga negra burguesa. Com o fim da república, ela acabou me roubando vários objetos pessoas, possivelmente para algum ritual de magia negra. Entre esses objetos constavam roupa, perfume, livros do Robson Pinheiro revelando o modus operandi dos magos negros que combatiam os agentes do Cordeiro aqui na Terra, o a caixa de DVDs que eu ainda não havia assistido. Para minha sorte havia emprestado para um amigo cinéfilo copiar. Pedi para que ele gravasse para mim o filme. Era o ano de 2011.
          Devido a minha vida atribulada, sempre mudando de casa, lutando contra paixões delirantes, falsos amigos e obsessões espirituais de todo tipo, só consegui assistir todo o filme este ano. Foi a realização de um sonho de infância.
          O filme foi uma segunda adaptação para o cinema do romance expressionista do escritor judeu alemão Alfred Döblin. Retrata a vida de Franz Biberkopf , recém saído da prisão após matar um prostituta com quem vivia e explorava, no ano de 1928, durante a República de Weimar. Franz faz uma promessa de que levaria uma vida decente. No início arruma uma namorada judia, se apaixona e procura um emprego honesto, para ser considerado um homem de bem. O tio de sua namorada lhe arruma um trabalho de vendedor de cadarços, numa Berlin com mais de um milhão de desempregados. Se envolve com uma cliente viúva, e comete o erro infantil de contar para seu "amigo". Este vai até a casa da viúva e a chantageia, levando dinheiro e objetos. Neste casa observamos o grande erro de Biberkopf : confiar nas pessoas.
          Ao longo do filme o personagem passará por vários empregos, confiará em vária pessoas que sempre acabam traindo-o. Mesmo assim ele não perde a esperança de viver honestamente e encontrar amigos verdadeiros. O subtítulo do filme poderia ser: a vida desgraçada de Franz Biberkopf. Em em meio a uma Berlin arrasada econômica e socialmente, os trabalhadores procuram desesperadamente qualquer forma de sobrevivência, e muitos aderem aos movimentos nazistas e comunistas, uns por ideologia, outros por falta de opção. É a década onde é gestado o ovo da serpente da ascensão nazista na Alemanha.
          Durante sua peregrinação por bares, prostíbulos, empregos provisórios e romances trágicos, Biberkopf descobre que ser um homem decente não é tão simples quanto ele imaginava. Confrontado com seu comportamento contraditório que o leva a atos de traição de suas companheiras, com a inveja daqueles que considerava como amigos, ele cumpre sua via crucis. Como em romance de formação, assistimos a trajetória de uma espécie de quixote alemão, que nunca perde a fé na vida, na sinceridade e na amizade.
           A lendária cena do matadouro é uma metáfora perfeita das ruínas do capitalismo em crise aguda, que tritura as pessoas sem piedade para manter sua lógica perversa de acumulação, enquanto os sonhadores, como Franz Biberkopf, lotam os hospícios e os necrotérios, em um tempo em que muitos acreditavam que era o apocalíptico fim do mundo.
          Mas no final ele sobrevive, aleijado, marcado a ferro e fogo pelo caos social e humano de uma sociedade reificada, onde as pessoas apenas usavam umas as outras, com uma inconsciência quase infantil, descartando-as quando não servem mais. O nazismo transformaria essa sociabilidade coisificada em uma máquina de extermínio daqueles que não serviam mais á lógica destrutiva do capital.